O ex-primeiro-ministro angolano, Marcolino Moco, disse hoje que a Presidência do general João Lourenço angolana é o “núcleo” de “consagração das anormalidades” no sistema orgânico de Justiça no país, por legalizar a dependência do Procuradoria-Geral da República às instruções do Presidente da República, igualmente Presidente do MPLA (partido no Poder há 48 anos) e Titular do Poder Executivo.
Marcolino Moco, que falava hoje via zoom sobre “o papel da justiça para a garantia de estabilidade e soberania”, durante a Conferência Internacional sobre Paz, Estabilidade e Desenvolvimento promovida pela UNITA (o maior partido da oposição que o MPLA ainda permite), apontou uma série de elementos que considerou “degradantes” da Justiça (ou daquilo a que o regime chama Justiça) angolana.
“O mais preocupante é que os elementos mais degradantes dessa justiça, especialmente no pós-guerra civil terminada em 2002, foram sendo sucessivamente consagrados constitucional e legalmente no sistema, tanto político como no estritamente orgânico”, disse o político angolano.
De acordo com o ex-secretário-geral do MPLA (no poder desde 1975) o “passo mais decisivo” de actos “degradantes” da Justiça no país foi a criação de um “híper presidencialismo” na pessoa de um chefe de Estado.
O “híper presidencialismo”, afirmou Marcolino Moco, congrega no mesmo titular o poder executivo, “entretanto, subtraído de todos os mecanismos formais e informais de controlo e fiscalização dos seus actos”, referiu.
Para Marcolino Moco, foi fácil, primeiro a José Eduardo dos Santos (ex-presidente angolano), o “arquitecto” constitucional e político do sistema vigente, iniciar um processo de “desmantelamento da justiça orgânica, particularmente nos seus fundamentos éticos, morais e deontológico”.
“O que tem cabido agora ao Presidente (da República) João Lourenço é fruir e dar continuidade, sem qualquer pejo, à tristemente monumental obra do seu antecessor”, criticou.
Para o ex-dirigente do MPLA, no que denominou de “plano da consagração das anormalidades” no sistema orgânico de Justiça, “é preciso destacar a legalização da dependência do Procurador-Geral da República (PGR) das instruções do Presidente da República”.
Isto, afirmou, apresenta-se “manifestamente contra o espírito da autonomia institucional e funcional da Procuradoria-Geral da República e do Ministério Público, no quadro de qualquer Estado democrático e de direito”.
O também jurista e antigo secretário executivo da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) apontou, ainda, “outros elementos da anormalidade”, no âmbito do poder judicial, “consentidos sistematicamente pelos próprios juízes”, como “o sacrifício do fundamental princípio da inamovibilidade dos juízes consagrado constitucionalmente”, realçando que não há justiça orgânica que nessas condições “possa constituir garantia para a estabilidade e o desenvolvimento nacional”.
No entender de Marcolino Moco, o “núcleo central da acção destrutiva” da justiça angolana “é a própria Presidência da República”.
“Basta lembrar as instruções que o Presidente (da República) João Lourenço deu, sem qualquer discrição, ao novo presidente do Tribunal de Contas sugerindo que não fora por acaso que a anterior titular do cargo foi afastada, quando razões mais gravosas se prendem com o inamovível presidente do Tribunal Supremo”, concluiu.
NADA VAI MUDAR, TUDO VAI MUDAR
Recorde-se que Marcolino Moco considerou, no dia 21 de Julho, “muito interessante e de grande alcance” a iniciativa da UNITA de destituição do Presidente angolano, sobretudo em termos políticos, considerando que o pedido indica “aspectos muito graves” que se passam em Angola.
Na altura, em declarações à Lusa, Marcolino Moco disse que, “em termos políticos, não há dúvidas que é uma iniciativa muito interessante, pelo menos através desta atitude está a chamar-se a atenção para aspectos muito graves que se estão a passar no país por iniciativa do Presidente da República, João Lourenço”.
Marcolino Moco salientou que o seu comentário não visava defender se o Presidente angolano deve ou não ser destituído do cargo, mas que a iniciativa legislativa da UNITA “vem na altura de, pelo menos, sacudir a sociedade nacional e internacional no sentido de alertar que o que se passa em Angola é muito grave”.
“O Presidente (da República) João Lourenço está a matar os mecanismos judiciais de forma acintosa, à luz do dia, toda a gente a ver”, afirmou Marcolino Moco, salientado que com os seus despachos o chefe de Estado angolano está a criar “um grande monopólio económico”.
Para o antigo primeiro-ministro angolano, através de despachos presidenciais, João Lourenço, reeleito em 2022 para um segundo mantado de mais cinco anos, “está a puxar a brasa para toda a sua sardinha, em termos económicos, sem olhar para as consequências”.
“Estou a referir-me ao grande monopólio económico que ele está a criar, está a empobrecer o país e a congelar o sangue do país: a moeda não circula, a fome, a indigência, o desemprego aumentam”, apontou.
Marcolino Moco criticou também João Lourenço por “atirar-se” às empresas dos filhos do ex-presidente angolano José Eduardo dos Santos: “Há toda uma série de questões que, de forma geral, são levantados pelo esboço da acusação da UNITA que, pelo menos, dão a sensação de que afinal a oposição tem a noção do que se passa e está a levantar a situação da gravidade das questões que se passam no país na pessoa do Presidente João Lourenço”.
A iniciativa de destituição de João Lourenço, recorde-se tem fundamentos doutrinários, político-constitucionais e políticos de desempenho constituem os eixos da iniciativa da UNITA, referindo que a governação de João Lourenço “é contra a democracia, contra a paz social e contra a independência nacional”.
E em reacção, o MPLA acusou a UNITA de ser “irresponsável” e de querer ascender ao poder “sem legitimação”, afirmando que os seus deputados vão tomar providências para impedir que o parlamento angolano seja instrumentalizado.
Para a iniciativa da UNITA – que conta apenas com 90 deputados – passar no crivo do plenário do parlamento, onde o MPLA detém a maioria, dois terços de deputados em efectividade de funções deverão votar favoravelmente, admitindo-se que por ser uma decisão por voto secreto, uma boa parte do MPLA possa solidariza-se com a UNITA.
Questionado se a iniciativa da UNITA tem condições para avançar, ante a maioria parlamentar do MPLA, Marcolino Moco referiu que mesmo que a iniciativa não resulte do ponto de vista legislativo, em termos políticos ela tem “um grande alcance”.
“Esse tipo de actos nem sempre têm o valor pelas consequências que possam ter. Eu, por exemplo, sou jurista, mas não só formalista, olho o direito e a justiça não como um valor em si, mas como um meio”, notou.
Mas, em termos políticos, prosseguiu, “não é preciso que as consequências desta acção venham a ser efectivas, o que a princípio olhando para o plano constitucional, sobretudo no plano material, continua a não haver coragem no seio do MPLA”, apontou.
Em relação à reacção do MPLA, Marcolino Moco considerou que esta reflecte o “mesmo comportamento destes (dirigentes) alegarem serem os inventores da democracia e fundadores da nação”.
“Já vimos a resposta agora do MPLA, que reflecte o mesmo comportamento de que eles que são os inventores da democracia, eles são os fundadores da nação, um conceito completamente errado e que deve ser abandonado se queremos ter efectivamente um país para todos”, defendeu.
Marcolino Moco acrescentou: “Ninguém fundou a nação, este é um slogan político que não é de todo proibido de se dizer, mas não pode ser aceite como algo efectivo, ninguém criou a nação, ela criou-se ao longo da história”.
Folha 8 com Lusa